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Textos Avulsos

sexta-feira, 23 de abril de 2004

Domingo

Acordou e não reconheceu o tecido daquele lençol. Onde estavam os travesseiros? Sua cabeça estava bem próxima ao seu joelho. Conseguia sentir o cheiro da ferida ainda úmida na coxa esquerda. Tentou mexer os braços. Um deles não respondeu. Parecia que formigas apressadas e desordenadas (existe?) caminhavam sobre seu cotovelo e ombro. Mexeu o outro braço procurando com a ponta dos dedos algo familiar. Tocou o chão. Estava frio. Era de madeira.

Notou que estava nu. Só o lençol lhe protegia de olhos alheios. Lembrou de abrir os olhos. Viu um cabelo encravado no braço que tinha formigas caminhantes. Mexeu a cabeça um pouco para trás afastando do nariz aquele amargo que saia da ferida. Tentou esticar as pernas. O lençol era pequeno. Estava frio. Dobrou as pernas novamente. O pescoço doía na posição longe do joelho. Ainda assim era melhor que o cheiro de sangue sujo.

Virou um pouco a cabeça e conseguiu ver que o colchão era bonito. Branco. Cheiroso. Percebeu que o lençol também era branco. Tinha manchado o lençol de sangue. Teria que pedir desculpas ao dono. Mas a culpa era que quem o deitou ali. Depois resolveria isso.

Mexendo apenas os olhos procurou sua roupa. Tinha saído de casa de calça jeans, camisa de malha azul, tênis e a mochila nas costas. Nenhuma roupa no chão. Talvez estivesse pendurada em algum lugar. Não conseguia levantar a cabeça. Talvez daqui a pouco. Conseguiu ver a porta do cômodo. Não parecia ser um quarto. A não ser pelo colchão. Não conseguia ver janelas. Sua visão se restringia a um palmo acima do chão.

Passou a língua nos lábios e sentiu um gosto repulsivo. Dentro da boca estava pior. Era um gosto parecido com o cheiro da ferida. Cabo de guarda-chuva seria algo que teria aquele gosto. Sentiu os dentes doerem. Era o frio.

Tentou novamente levantar a cabeça. O pescoço ainda doía muito. Conseguiu enxergar a parede. Era amarela. Não o amarelo do ouro e das riquezas, mas o amarelo do embaçamento do dia-a-dia e do envelhecimento das coisas. Teve que fechar os olhos. Não viu as roupas penduradas tão próximas. Esticou as pernas novamente. Estava frio. A ferida reclamou. Sujou ainda mais o lençol. Depois pediria desculpas. Precisava levantar.

Desistiu.

Fechou os olhos e esperou.