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Textos Avulsos

quinta-feira, 15 de abril de 2004

Carlinhos

Carlinhos mora com a mãe e o pai. Seu irmão mais velho já é casado. Ele é bem mais velho que Carlinhos. Seu irmão mais novo morreu. Carlinhos não gosta de lembrar do irmão mais novo. Deixa ele triste. Seu nome é João. Carlinhos não gosta de pensar nele como alguém que já não é mais. João morreu com 16 anos. Tiro de espingarda de chumbo na coxa. Ele morreu. Carlinhos nunca explica como um tiro na coxa matou o João. Carlinhos fica com um olhar estranho quando perguntamos sobre isso. Carlinhos é moreno dos olhos verde. Ele puxou os olhos da mãe. O moreno do pai. Eu não sei o nome do pai nem da mãe do Carlinhos. Eu já fui na casa do Carlinhos. Ele me apresentou-os como “esse é meu pai” e “essa é minha mãe”. Tudo bem.

Carlinhos é calmo e calado. Carlinhos só fala quando bebe. Carlinhos bebe muito. Carlinhos não fala dele ou de sua família. Carlinhos observa tudo e todos. Ele fala das pessoas que vemos todos os dias. Ele fala coisas que não vemos todos os dias nessas pessoas. Carlinhos não bebe com quem ele não conheça. Acho que é medo de falar.

Carlinhos não trabalha. Carlinhos acorda ao meio dia com o cheiro da comida que sua mãe prepara. Carlinhos levanta, toma banho, dá um beijo na testa de sua mãe e senta à mesa com ela para almoçar. A mãe do Carlinhos sempre pergunta para onde ele foi à noite anterior e Carlinhos responde a ela com um sorriso. Carlinhos não fala. A mãe do Carlinhos entende e continua a comer.

No final da tarde Carlinhos vai pra praça conversar com os amigos. Carlinhos não fala. Carlinhos observa tudo e todos. Carlinhos janta um sanduíche ou um salgado numa lanchonete na praça. Para não dar trabalho à sua mãe. A mãe do Carlinhos é muito bonita, mas ela é triste. Seu rosto é sofrido. Seus olhos não brilham mais.

Desde quando o João morreu que Carlinhos não fala. Carlinhos só fala quando bebe. Carlinhos bebe muito. Carlinhos não se droga. Ele sempre recusa. Até eu já ofereci.

Todas as noites nos encontramos na casa de algum amigo para beber. Eu não bebo. Eu fumo Carlton. Eu falo. Eu só não falo quando me drogo. Eu observo. Observo o Carlinhos. Observo nossos amigos. Observo um gato andar cautelosamente por cima do muro. Observo uma senhora caminhar lentamente pela rua carregando todo o peso da sua idade.

Eu apenas observo. Não consigo falar sobre isso. É o meu modo de ver. Ninguém entenderia.

Eu namoro com o Carlinhos. Ele me viu e me achou bonita. Foi difícil ouvir sua voz a primeira vez. Ele sempre estava calado. Ele não bebia perto de mim. Um dia eu me escondi perto de onde ele estava bebendo com os amigos. Eu ouvi a sua voz. Me apaixonei. Fui falar com ele e ele emudeceu. Fiquei triste. Hoje eu namoro com ele. Não pergunte como foi. Eu não vou explicar.